31.5.11

A arte de ser avó

Estou muito feliz e emocionada, nasceu Ramiro, meu segundo neto. 

Este é um trecho da crônica "A arte de ser avó", publicada  em 1964, no livro "O brasileiro perplexo" de Rachel de Queiroz.



“Netos são como heranças: Você os ganha sem merecer. Sem ter feito nada para isso, De repente caem do céu... É como dizem os ingleses, um Ato de Deus. Sem se passarem as penas do amor, sem os compromissos do matrimônio, sem as dores da maternidade. E não se trata de um filho apenas suposto. O neto é, realmente, o sangue do seu sangue, filho do filho, mais filho que filho mesmo...

Cinqüenta anos, cinqüenta e cinco... Você sente, obscuramente, nos seus ossos, que o tempo passou mais depressa do que esperava. Não lhe incomoda envelhecer, é claro. A velhice tem as suas alegrias, as suas compensações; todos dizem isso, embora você, pessoalmente, ainda não as tenha descoberto, mas acredita. Todavia, também obscuramente, também sentida nos seus ossos, às vezes lhe dá aquela nostalgia da mocidade. Não de amores com as suas paixões: a doçura da meia-idade não lhe exige essa efervescência. A saudade é de alguma coisa que você tinha e que lhe fugiu sutilmente junto com a mocidade.

Bracinhos de criança. O tumulto da presença infantil ao seu redor. Meu Deus, para onde foram as suas crianças?

Naqueles adultos cheios de problemas que hoje são os filhos, que têm sogro e sogra, cônjuge, emprego, apartamento e prestações, você não encontra de modo algum as suas crianças perdidas. São homens e mulheres – não são mais aqueles que você recorda.

E então, um belo dia, sem que lhe fosse imposta nenhuma das agonias da gestação ou do parto, o doutor lhe coloca nos braços um bebê. Completamente grátis – nisto é que está a maravilha.

Sem dores, sem choro, aquela criancinha da qual você morria de saudades, símbolo ou penhor da mocidade perdida. Pois aquela criancinha, longe de ser um estranho, é um filho seu que lhe é devolvido.

E o espantoso é que todos lhe reconhecem o seu direito de o amar com extravagância. Ao contrario, causaria espanto, decepção se você não o acolhesse imediatamente com todo aquele amor recalcado que há anos se acumulava, desdenhado, no seu coração.

Sim, tenho certeza de que a vida nos dá netos para nos compensar de todas as perdas trazidas pela velhice. São amores novos, profundos e felizes, que vem ocupar aquele lugar vazio, nostálgico, deixado pelos arroubos juvenis.

E quando você vai embala o menino e ele, tonto de sono abre o olho e diz: “Vó!”, seu coração estala de felicidade, como pão ao forno!”


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29.5.11

Gordos do mundo, uni-vos!

Texto de Antonio Prata, publicado na Folha de São Paulo em 27.4.2011. 
Adorei!

  

A SEGUNDA METADE do século 20 assistiu à fragmentação das lutas e ao alargamento dos direitos: os negros se organizaram, as mulheres se organizaram, os judeus se organizaram, os gays se organizaram -até os ruivos, ouvi dizer, têm associações contra o preconceito cromocapilar que, parece, sofrem por aí.


     Ótimo. Hoje, o sujeito pensa duas vezes antes de pintar suásticas ou enfiar um cone branco na cabeça, vestir os lençóis da cama e sair queimando cruzes pelas ruas. O problema é que sobrou uma única minoria, desarticulada e sem líderes, tomando na cabeça todos os cascudos que os últimos séculos dividiram entre os grupos supracitados: os gordos.


     Na supremacia magra em que vivemos, já não se medem mais crânios para atestar a superioridade de ninguém, medem-se abdomens. O gordo, hoje, anda com os ombros curvados e os olhos baixos, como o judeu na Alemanha, em 1933, os negros, durante o Apartheid, uma mulher ou um gay num ônibus, tomado pela Gaviões da Fiel. Ainda não há campos de extermínio para obesos nem leis impedindo seu ir e vir, mas, pelas esquinas e mesas de bar, pelas praias e parques, podem-se ouvir os cochichos, cada vez menos discretos: "Deus do céu, será que ele não tem vergonha na cara?!", "Devia ser proibido uma mulher dessas usar biquíni!", "Se fosse um filho meu, internava num SPA!".


     A ciência decretou, a moda difundiu, nossos superegos aceitaram: gordo é errado. Gordo é um descontrolado -e o autocontrole, hoje em dia, é tudo. Prega o espírito de nossa época que cada um de nós é uma empresinha a ser racionalmente administrada, e, no balancete diário de nossos corpos, o acúmulo de calorias é como um deficit econômico.


O gordo é um latifúndio improdutivo, máquina parada, ciclo vicioso.     Ok: o brasileiro anda comendo mal. De fato, cada degrau que ascendemos na escala social é um buraquinho que alargamos no cinto. É bom que o governo faça campanhas por hábitos mais saudáveis, que as escolas ensinem educação alimentar, que meu querido Drauzio Varella nos lembre que nem só de papilas gustativas vive o homem; que, de coxinha em coxinha, nossas artérias vão acabar entupidas como a avenida Rebouças, às 6h da tarde.


     O preconceito, contudo, essa campanha raivosa que trata a todos aqueles que não se encaixam no diet-zeitgeist como se fossem poltergeists, não nasce da preocupação com o outro. É o ressentimento que faz com que as bocas que se fecham tão estoicamente à comida abram-se vorazmente para maldizer os gordos. Pois o gordo, meus caros, é o novo libertino. Quando o sexo era proibido, a prostituta era "feita pra apanhar", era "boa de cuspir". Hoje, com o sexo como totem e o torresmo como tabu, os que trocaram a penitência diária pelas abdominais e a hóstia pela granola, buscando a transcendência pela contenção, ficam indignados com a banha alheia. Por que é que eu preciso sofrer tantas privações, pensam eles, enquanto outros podem viajar na maionese?


     Gordos do mundo, uni-vos! Ostentais as panças com orgulho. Há em vosso guloso descontrole uma nota de revolta contra um mundo que encolhe; um mundo que, cada vez mais, quer menos -em todos os sentidos.

25.5.11

Todo o dia ...

Já que inventei de divulgar meu blog, comecei a me sentir na obrigação de escrever. 
Então, lembrei de um escrito de junho de 2006.
Ufa! Ainda bem que aquele momento já passou.



Acordar
olhar o relógio
acender o rádio
encher o prato da Mimi
falar com ela
arrumar a cama
tenho que fazer exercício
lavar o rosto
tomar café
tomar os remédios
lavar a louça
tenho que ligar para a dentista
tem roupa para lavar?
receber telefonema da mãe
olhar o relógio
ver a programação do dia
é necessário ligar para alguém?
ligar ou não ligar?
olhar agora os e-mails?
tenho que responder 175 e-mails
vou almoçar com alguém?
convido alguém para almoçar?
há programa para depois do trabalho?
qual deles escolho?
tenho que ligar para a fisioterapeuta
tomar banho
agora ou de noite?
fazer carinho na Mimi
passar creme no rosto
tenho que sair com o amigo
que não está bem
me arrumar
está frio ou calor?
olhar a temperatura na TV
chove?
olhar o relógio
escolher a roupa
calça ou saia?
tenho que fazer o relatório para a tia
bota ou sapato?
roupa clara ou escura?
escolher estilo
arrumada ou esportiva?
jovem ou senhora?
tenho que ir na costureira
e combinar
cores
e combinar
óculos
e combinar
bolsa
e combinar
acessórios
bijuteria ou joia?
olhar o relógio.
Pronto!
Uma etapa vencida.

Pegar
documentos
carteira de dinheiro e cartões
moedeiro
talão de cheques
tenho que ligar para a amiga
que não está bem
e pegar:
agenda
chaves do carro
e procurar:
celular
óculos escuros
lanche
material de trabalho
saco do lixo
olhar o relógio
ver onde está Mimi
a chave de casa está na mão?
e a do carro?
sair
trancar bem as portas
pegar os jornais
tenho que levar as calças para tingir
procurar o viva-voz dentro do carro
sair com o carro
ver o portão fechar
olhar o relógio
Pronto!
Outra etapa vencida.

Olhei o relógio.
Nossa!
Não posso mais escrever.
Já são quinze para as duas e
tenho um monte de coisas para arrumar!
Antes vou jogar uma pacienciazinha,
mas, só uma...
Fiquei corrigindo o texto e já são três e doze!
Tenho um monte de coisas para fazer!
Antes vou tomar um café...
Agora são cinco e doze e ainda não tomei o café.
Mas, fiz muitas coisas.
e tenho muitas outras para fazer!

Enquanto isto, passa o tempo
e eu olhando o relógio...



22.5.11

Minha Vó-Mãe


Hoje, 20 de maio, faz tempo demais que minha avó Elvira morreu. Eu tinha 18 anos e ela era a mãe da minha mãe.
Não conheceu os meus filhos, meus netos e nem o Xico.
Não me viu arquiteta, nem cantora.
Não participou da minha vida adulta.
Uma pena...
Na noite do seu enterro (que eu não tive a coragem de assistir) meus companheiros do "Coral de Câmara do Rio Grande do Sul" fizeram uma serenata na minha janela.
Foi uma linda e inesquecível manifestação de carinho.

Só seis meses depois da sua morte consegui chorar, amparada pela minha amiga Selena.
A minha avó não chorava. Acho que as tristezas foram tantas, que as lágrimas secaram e somente um grito saía da sua garganta nos momentos de grande sofrimento.

Hoje, estou com saudade da minha Vó-Mãe! Era assim que eu a via, minha avó e minha mãe e era assim que eu a chamava.
Alguém tem culpa desta confusão?
A minha corajosa avó, “mulher separada” em Porto Alegre no início dos anos 30, que não acreditou que sua filhinha estivesse pronta para ser mãe?
Ou a minha frágil e jovem mãe, filha única, sem pai desde os 4 anos, solteira e grávida de mim aos 17?
Agora, é muito tarde para fazer esta pergunta. Não tem quem a responda e, de verdade, a resposta não me interessa mais!
As feridas já cicatrizaram...

E eu aprendi muito com a minha Vó-Mãe.
Ela nunca me ensinou a cozinhar, a costurar, estas coisas que, no meu tempo, as mocinhas costumavam aprender até na escola.
Mas, minha Vó-Mãe era sábia. Dizia que no dia em que eu quisesse fazer algo, qualquer coisa que fosse, eu saberia fazer porque me interessaria em aprender e aprenderia!

E assim foi e assim é.
Para surpresa de muitos, aprendi a fazer tudo o que eu quis fazer (até costurar e cozinhar).
Obrigada pela confiança, Vó-Mãe!

* na foto, minha mãe e minha avó Elvira comigo, na Rua da Praia, em 1947.